quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Variantes das unidades fraseológicas na língua portuguesa


IOVKA BOJÍLOVA TCHOBÁNOVA*
NADEZHDA KOSTOVA**


FLUL, Portugal*


Instituto da Língua Búlgara, Bulgária**


iovka2003@yahoo.com.br, nadddja@abv.bg

1. INTRODUÇÃO
A fixidez das unidades fraseológicas (UFs) relaciona-se com a estabilidade da sua forma e o carácter constante da sua composição lexical. Isso determina a sua reprodução no discurso. Sabe-se que as UFs não se improvisam no discurso, utilizam-se como unidades já prontas.
O estudo concreto dos fraseologismos demonstra que a forma das UFs é estável mas não petrificada, fossilizada. Como as UFs estão constituídas por várias palavras, isso cria grandes possibilidades de variação. A fixidez pressupõe a variação. O grau de variação pode ser diferente e então estamos na presença de diferentes variantes de uma mesma unidade ou de diferentes sinónimos. A distinção entre variação e sinonímia na fraseologia tem grande importância teórica e prática.
Corpus – A variação das UFs foi estudada com base num Corpus de fraseologismos, recolhidos em 7 dicionários monolingues e bilingues (cf. Bibliografia), referentes às letras F – J.
2. DELIMITAÇÃO DA VARIAÇÃO DE OUTROS CONCEITOS AFINS
2.1 Delimitação da variação da mudança paradigmática
Antes de estudar os diferentes tipos de variações das UFs, é necessário distingui-la da mudança paradigmática. As mudanças paradigmáticas estão relacionadas com mudanças nos significados gramaticais de alguns dos componentes, como por exemplo o género, o número, a determinação / indeterminação, a pessoa, o tempo, o aspecto. As mudanças paradigmáticas operam-se no funcionamento das UFs no discurso: branco como a cal, branca como a cal, brancos como a cal, brancas como a cal; comer como um abade, vou comer como um abade, comi como um abade. Vê-se que este tipo de mudanças estão motivadas pela relação genética existente entre a palavra e os componentes da UF.
2.2 Variantes e empregos individuais das UFs pelos escritores
As variantes das UFs não se têm que misturar com os empregos individuais das UFs pelos diferentes autores, que representam um fenómeno da fala (e não da língua). Na teoria da fraseologia estes empregos autorais são conhecidos com o nome de actualização ou paráfrase das UFs.
2.3 Transformação ou derivação fraseológica
A transformação fraseológica é a derivação fraseológica na qual a partir de uma UF que serve de base, por meio de diferentes mudanças estruturais (verbalização, adjectivação, adverbialização, nominalização) se forma uma nova UF.
Se observarmos a UF pálido como cal e empalidecer como cal veremos que o verbo deriva do adjectivo (as duas palavras têm a mesma base). Com mais frequência de uma unidade adjectival surge uma UF verbal, mas não sempre é fácil definir de forma categórica qual é a direcção da derivação: teimoso como burro – teimar como burro.
Os processos transformacionais são qualitativamente diferentes das modificações variacionais.
3. TIPOS DE VARIANTES
À semelhança da palavra que pode ter variantes morfológicas, fonéticas e ortográficas, as UFs também apresentam diferentes variantes, as mais importantes entre as quais são: 1) variantes formais ou gramaticais; 2) variantes lexicais; 3) variantes estilísticas; 4) variantes quantitativas, etc.
3.1 Variantes gramaticais
As variantes podem distinguir-se umas das outras devido a particularidades gramaticais:
Variação no número dos substantivos (cf. atirar-se como gato a bofe/bofes (DLPC) ‘1. Atirar-se com toda a velocidade, de forma impetuosa. 2. Dirigir-se a alguém com agressividade verbal; acusar com violência’; de mão dada, de mãos dadas; haver à(s) mão(s) (P. Us.) (DLPC) ‘entrar na posse de; alcançar, apanhar’; fazer de conta(s) que SV; deitar o(s) gatázio(s) a alguém ou a alguma coisa(Pop.) (DLPC) ‘agarrar, prender uma pessoa ou coisa’; sem horizonte (s) (loc. adv.) (DLPC) ‘sem perspectiva; sem aspirações’).
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Variação na forma do artigo ou a sua substituição por um demonstrativo ou possessivo; omissão do artigo (ex.: dar-se como (o) cão e (o) gato; ir a(o) gancho (DLPC) ‘ser preso’; da gema / de gema (DLPC) ‘que é genuíno, autêntico’; fazer de / da conta (DPB) ‘fingir’; de um jacto / de jacto (loc. adv.) (DLPC) ‘de uma só vez e com rapidez’.
Variação na forma do pronome pessoal (cf. andar com ela fisgada / trazê-la fisgada) (DLP) ‘ter uma ideia fixa, ter uma ideia má’);
Variação na forma do pronome demonstrativo (cf. isso / aquilo é mais garganta que outra coisa (DI P-P); isso / aquilo é garganta; ter muita garganta (Fam.) (DLPC) ‘ser fanfarrão, gabarolas; falar sem substância ou fazer promessas sem qualquer preocupação de as cumprir’)
Presença ou ausência do pronome possessivo (cf. ganhar a vida / ganhar a sua vida (DPB) ‘ganhar suficiente; ter trabalho, ganhar dinheiro’; gastar o (seu) cuspo (EI R-P) ‘perder (gastar) o seu latim’; fazer justiça pelas próprias mãos (DLPC) / fazer justiça pelas suas próprias mãos (DPB) ‘vingar-se pessoalmente de um mal, sem recorrer à justiça legal’)
A escolha da forma reflexiva ou não reflexiva do verbo (cf. ir(-se) desta para melhor (DLPC) ‘morrer’; deitar com as galinhas (DLPC) / deitar-se com as galinhas (DLP) ‘ir para a cama muito cedo’)
Variação na forma do advérbio (cf. não é por aí / aqui que o gato vai às filhós (DLPC) ‘expressão usada para afirmar que o perigo, o problema não reside numa questão de pormenor, a que se atribui pouca importância’)
A escolha da forma reflexiva ou não reflexiva da UF (a reflexividade pode exprimir-se por meio de uma forma pronominal do verbo ou por meio do pronome possessivo)
Os elementos sinsemânticos (preposições, conjunções) também podem sofrer variações (substituição de uma conjunção ou de uma preposição por outra ou a sua omissão) (cf. saber como gaitas (Fam.) / saber que nem gaitas (Pop.) (DLPC) ‘estar gostoso, apetitoso, com bom paladar; ter bom sabor’; chorar como / que nem uma Madalena; fazer alguma coisa em cima do (sobre o) joelho (EI R-P); girar sobre / nos calcanhares (Fam.) (DLPC) ‘ir-se embora’; a / de fito (CF) ‘fixamente’; gastar a paciência a / de alguém (DLPC) ‘aborrecer muito alguém, insistindo, importunando’; a jeito (loc. adv.) (DLPC) / de jeito (DI P-A) ‘em posição ou disposição propícia’; à grande / de grande (CF) ‘com magnificência; com largueza’; a / em jorros (DLPC) ‘em grande quantidade’; de / por juro e herdade (DLPC) ‘por direito hereditário’; às / nas horas de estalar (loc. adv.) (DLPC) ‘à última hora’).
As mudanças podem relacionar-se também com a morfologia derivacional:
Modificação relacionada com a formação de palavras, por exemplo a substituição de um componente nominal pelo seu diminutivo ou aumentativo (ex.: manso como um cordeiro / cordeirinho; cair como um pato / patinho); fazer o gosto ao dedo, fazer o gosto ao dedinho; fazer beiço / beicinho (DI P-P); dar um jeito / jeitinho (DLPC) ‘arranjar maneira de resolver uma situação, de vencer um obstáculo’; na ganga / de gangão (loc. adv.) (CF) ‘de escantilhão; de corrida’).
Modificações prefixais ou sufixais dos componentes verbais.
Este tipo de variação pode definir-se como estrutural–morfológica.
As variantes sintácticas representam um tipo de variação gramatical.
A variação das UFs pode manifestar-se também na ordem dos seus elementos:
Diferenças na ordem das palavras (deslocação posicional dos elementos da UF ou variantes sintácticas da mesma UF).
Diferenças nas relações sujeito – objecto.
3.2 Variantes quantitativas
As variantes de uma mesma UF podem distinguir-se entre si pelo grau da sua plenitude. Algumas UFs apresentam variantes curtas ou compridas como resultado da redução (do corte) ou do acréscimo dalgum elemento à forma básica.
a) Esse fenómeno observa-se quando temos algum elemento com função atributiva, que adquire o carácter de elemento facultativo (cf. falar pelo cotovelos / falar pelos sete cotovelos (Fig.) (DI P-P) ‘falar muito’; a galope / a todo o galope (loc. adv.) (DLPC) ‘1. Na velocidade máxima de uma montada, de um meio de locomoção... 2. Muito rapidamente’; dar na (real) gana a alguém (DLPC) ‘agir por capricho’; ir para o (ir parar ao) jardim das tabuletas (DI P-A) ‘morrer’; (ele) há cada uma! (Pop.) (DLPC) ‘expressão que se usa para exprimir admiração’; conhecer como a palma das suas mãos, conhecer como as suas próprias mãos, conhecer como os seus próprios dedos; honra lhe seja (feita)! (DLPC) ‘exclamação com que se presta homenagem ao comportamento meritório de uma pessoa’.
A omissão de um elemento facultativo pode estar combinada com mudanças paradigmáticas, o que mostra que a variação com frequência tem um carácter combinado.
Omissão de elementos periféricos da estrutura da UF (ex.: claro como a luz (do dia); branco como a cal (da parede); trabalhar como uma besta (de carga); (estar dum) humor de cão (de fila) (DI P-P); deixar o hábito / lançar o hábito (às ervas) (DLPC) ‘abandonar a vida religiosa’; deitar (o) dinheiro pela janela (fora) (Fam.) (DLPC) ‘gastar muito dinheiro em coisas ou actividades que não justificam o preço que se paga ou que são supérfluas; à grande (e a francesa) (DI P-P) ‘luxuosamente, regaladamente, à larga’;
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A redução quantitativa de elementos periféricos permite chamar estas unidades – UFs "cortadas" e definir este tipo de variação como lexical – quantitativa.
Às vezes o corte do último elemento nominal pode conduzir à formação de um novo paradigma, ou seja, à transformação da variante numa UF independente.
3.3 Variantes lexicais
Com mais frequência as variantes dum mesmo fraseologismo distinguem-se pela sua composição lexical.
A variação lexical consiste na substituição dalgum componente da UF por algum sinónimo (ex.: bêbado como uma cuba / um tonel); morder-se de inveja / morrer de inveja / roer-se de inveja (DLPC) ‘ficar enraivecido por alguém ser aquilo que se desejaria ser ou possuir alguma coisa que se gostaria de ter’; mexer / tocar na ferida (DLP) ‘tocar no ponto fraco’; gastar cera com ruins / maus defuntos (DLPC) ‘fazer sacrifícios em proveito de quem não os merece’; perder / gastar o seu latim EI R-P) ‘gastar o (seu) cuspo’; gozar o prato / o filme (DI P-P); deitar / flectir o(s) joelho(s) (DLPC) manifestar respeito, cortesia ou humilhação, perante alguém’; fazer jogo franco / limpo (com alguém) (DI P-P)
Aqui temos que salientar especialmente a variação nas UFs verbais onde o verbo sofre substituições sinonímicas.
Estamos na presença de variantes lexicais não só quando a unidade lexical é substituída por algum sinónimo mas quando esta é substituída por algum conceito semelhante, próximo. O substituto pode ser alguma palavra da mesma série semântica (ex.: desprender a língua, desprender a voz; lamber os dedos / beiços / lábios).
3.4 Variantes estilísticas
Quando um componente da UF é substituído pelo seu sinónimo estilístico estamos na presença de fraseologismos que coincidem no seu significado, em geral, mas diferenciam-se pelo seu valor estilístico e a esfera do seu emprego (ex.: dar-lhe na cabeça fazer alguma coisa, dar-lhe na veneta (Fam.), dar-lhe na telha (Fam.), dar-lhe no miolo (Fam.); dar tratos à cabeça, dar tratos à mioleira (aos miolos); dar com o nariz na porta, dar com as ventas na porta (Fam.); moer (massacrar, ralar) (Fam.) o juízo de alguém (DLPC) ‘maçar, incomodar’; deixar / largar o hábito (DLPC) abandonar a vida religiosa.
3.5 Variantes combinadas
Os tipos de variação estudados não existem sempre em forma pura; com muita frequência aparecem combinados. Por esta razão pode falar-se de variação complexa das UFs.
3.5 Variantes ortográficas
Quando há diferenças na ortografia dalguns fraseologismos falamos de variantes ortográficas.
4. DEFINIÇÃO DO CONCEITO VARIANTES DA UF
O exposto anteriormente permite definir de forma mais concreta o conteúdo do conceito de variantes da UF. As variantes são modificações da UF, casos particulares de manifestação da forma invariante da UF. As variantes são semantica e funcionalmente equivalentes. As variantes têm uma invariante comum. No caso das variantes introduzem-se matizes adicionais, mas o significado básico continua igual ao significado da invariante, a imagem não muda, fica idêntica. O que une as variantes duma mesma UF são os elementos lexicais comuns, a mesma imagem, assim como a pertença à mesma categoria gramatical.
4.1 Variantes e sinónimos
Para distinguir a variante fraseológica e o sinónimo fraseológico adopta-se a seguinte definição:
1) Os fraseologismos que apresentam certas diferenças lexicais e gramaticais mas têm a mesma estrutura da imagem são variantes.
2) Os fraseologismos que têm um significado igual mas estão construídos com base em diferentes imagens são fraseologismos sinónimos.
As variantes são modificações de uma mesma unidade fraseológica, enquanto os sinónimos são unidades fraseológicas independentes.
BIBLIOGRAFIA
Carneado More, Zoila (1985) "Notas sobre as variantes fraseológicas". – In: Anuário L/L, 16, pp. 269-277.
Chacoto, Lucília Maria (1997) "Quem conta um conto acrescenta um ponto. Figement et variation dans les proverbes portugais". – In: Paremia, 6, Madrid, Paremia, pp. 183-188.
Dugas, André (1995) «La variation dans un corpus oral de phrases figées du français du Québec». – In: Actes du colloque Données orales et théorie linguistique, Université de Gand.
García-Page Sánchez, Mario (1996) "Sobre las variantes fraseológicas en español". – In: Revista canadiense de estudios hispánicos, XX, 3, pp. 477-490.
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Granja, Maria Álvarez de la (1999) "Variation e sinonímia nas unidades fraseológicas. Caracterización xeral e propostas de tratamento lexicográfico". – In: Cadernos de língua, № 19, pp. 43-63.
Hundt, Christine (1993) "Expressões Idiomáticas Estáveis e Variaáveis". – In: Actas do IV Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Universidade de Hamburgo, 6 a 11 de Setembro de 1993, Lisboa-Porto-Coimbro, Lidel, pp. 157-166.
DICIONÁRIOS
Dicionários gerais da língua portuguesa
DLPC – Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), dir. por João Malaca Casteleiro, Editorial Verbo, 2001, 2 volumes.
DPB – Dicionário do Português Básico, autor e coordenador Mário Vilela, Porto, Editorial ASA, 1991.
DLP – Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, CD-Rom, 1998.
GDLP – Grande Dicionário da Língua Portuguesa, org. por Cândido Figueiredo, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996.
Dicionários fraseológicos bilingues e monolingues
EI R-P – Equivalentes Idiomáticos (Dicionário russo-português), org. por Alexandre Zditovetsky, Moscovo, Escola Superior, 1987.
DI P-P – Dicionário Idiomático Português-Polaco, org. por Jacek Plecinski, Poznan, 1998.
DI P-A – Dicionário Idiomático Português-Alemão. As expressões idiomáticas portuguesas, o seu uso no Brasil e os seus equivalentes alemães, org. por Hans Schemann e Luíza Schemann-Dias, (s/d), Livraria Cruz e Max Hueber Verlag.
NDEI – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, org. por António Nogueira Santos, Lisboa, João Sá da Costa, 2000.



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